Então, noventa anos depois da lendária história desses seis jovens, líderes de suas próprias guildas, que futuramente fundaram… — Quando me dei conta, olhei por cima do livro que segurava e vi que minha irmã, enrolada em seu cachecol rosa-avermelhado, havia adormecido. Não pude evitar um sorriso sincero ao observar sua expressão adorável e pacífica, após um dia rigoroso de frio no nosso inverno. Então, fechei o livro de capa branca, adornado com belos detalhes dourados, intitulado “Akedea”. Com passos silenciosos, saí do quarto e, ao alcançar a porta, puxei a corda do abajur que estava ao lado. Sussurrei em um tom baixo, quase como se não quisesse interromper a paz daquele momento. — Boa noite, minha irmã.
Continuei meu caminho pelo corredor, até que encontrei minha mãe, que estava acordada em frente à porta de seu quarto.
— Ela já dormiu? — Minha mãe, com um sorriso e um cansaço estampado nos olhos, sempre preocupada com o sono e o crescimento de minha irmã, perguntou, embora já soubesse a resposta.
— Sim, caiu no sono rápido. Faz sentido, já que passou o dia brincando nesse frio… Tenho medo que ela fique doente. — Respondi, ajeitando meu casaco e minhas luvas.
Ela sorriu, com um olhar exausto, e então me abraçou.
— Muito obrigada, meu filho. Você é tão atencioso, mesmo tão novo. Tenho tanto orgulho de você. — A sensação de seu carinho me aqueceu, e retribuí o abraço, contente por vê-la bem. Naquele dia, eu tinha apenas dez anos, mas já tinha plena consciência do quão exaustivo era o trabalho dela e, em especial, sua pesquisa.
Não eram os elogios ou o olhar orgulhoso de minha mãe que me moviam. Minha família sempre elogiou minha conduta — bem comportado, inteligente, gentil com os outros — mas eu nunca me senti soberbo por isso. Não sou assim por conta de orgulho fútil ou pela busca de reconhecimento, o que me fez ter certa repulsa pelos nobres mimados das grandes capitais, de egos inflados, que mais tarde conheceria. Para mim, essas não eram qualidades; mas sim minhas obrigações.
— E o papai, ele já chegou? — Nos tempos de missão, era sempre difícil ver meu pai. Conhecido por nunca perder seus soldados no campo de batalha, ele é uma verdadeira inspiração para mim, meu herói.
— É triste, mas ainda não tivemos notícia de quando ele… — Minha mãe pausou, com o olhar preocupado. — Ainda não tivemos notícia de seu pai…
A dúvida de minha mãe sobre meu pai me tirou dos meus pensamentos. Era de partir o coração sempre que via minha mãe com aquele olhar, um rosto familiar de apreensão. Muitas vezes ausências prolongadas e um desejo constante de notícias, por mais pequenas que fossem. Eu sabia que aquela dúvida era constante. Essa era a vida dos magos, a incerteza de que, a qualquer momento, alguém poderia não voltar. Quantas noites minha mãe ficou acordada, tomada por orações silenciosas, esperando notícias que nunca vinham? Eu era jovem demais para compreender tudo aquilo, mas já entendia o suficiente. Naquela noite, parecia ser mais uma dessas, e enquanto divagava em tais pensamentos, de repente…
— Que mistério… Quando será que eu vou chegar? — Disse, com a irreverência habitual. Meu pai apareceu ao nosso lado, sem aviso prévio, nos abraçando.
Era como se ele apenas tivesse aparecido do nada no corredor, surgindo com sua típica ousadia. Sempre uma inspiração, ele também tinha o jeito engraçado de trazer leveza aos momentos mais tensos. — Surpresa! — Exclamou ele, por volta das onze da noite, fazendo o rosto de minha mãe mudar de preocupação para uma expressão um tanto enraivecida em um piscar de olhos.
— Rodion, Lecia está dormindo, você vai acordá-la gritando assim! — Minha mãe falou, com um tom de voz mais baixo, mas ainda irritado.
Ele baixou o rosto olhando para o chão por alguns segundos e, com todo seu conhecimento estratégico de anos de experiência, voltou a olhar para minha mãe e a respondeu com um sorriso torto:
— Uh… você está linda hoje?
Não lembro bem se discutiram; o que me lembro e o que é importante, foi que meu pai acordou quase toda a casa com sua chegada repentina — por sorte dele, minha irmã não acordou. A última memória que tenho daquela noite é estar deitado em minha cama, ouvindo as histórias de sua missão.
Aqueles eram bons tempos que, para minha tristeza, nunca mais voltariam. Afinal, algumas semanas após aquele dia, ocorreu a pior noite de nossas vidas. Naquela época, eu mal podia imaginar o que o destino me preparava. Se eu pudesse, teria ficado mais tempo naquele abraço, já que foi uma das últimas vezes que sentiria aquela sensação de paz, quando todos nós estávamos juntos.
O trem sacolejava suavemente, até que as sapatas de freio o desaceleraram de repente, somado àquele barulho estridente de metal, o presente me faz acordar dessas boas e leves memórias, enquanto eu encarava os pinheiros e as montanhas cobertas pela neve. Eu já não era mais aquela criança que não conhecia a crueldade e a dor que este mundo poderia causar, não mais com a mente ocupada por medos infantis. Agora, aos quatorze, é a idade em que a maioria dos jovens começa de verdade sua jornada como magos, e por mais que eu fosse uma exceção à regra — já que iniciei tais estudos anos atrás — a ideia de ingressar na Ice Barrier mexia com minhas expectativas, eu sabia que a jornada seria diferente — mais difícil e talvez mais solitária.
Quando a locomotiva enfim parou, ao longe, entre duas montanhas, vi a enorme barreira de gelo que dá nome à minha nova escola. Mesmo à distância, sua presença era imponente e amedrontadora. Ice Barrier é a maior escola de magia do país de Gorskaria, onde eles ensinam tudo o que eu queria estudar. Próximo dali estava o prédio principal da escola, onde vou passar boa parte dos meus próximos três anos. Enquanto alguns estavam correndo, apressados para sair primeiro, apenas fiz questão de me virar para trás e ver se alguém precisava de ajuda com as malas. Como não foi o caso, apenas segui meu caminho, quando ouvi alguém com uma voz forte e com um forte sotaque.
— Então, você é o aluno novo que veio da família Osfner, não é? Hoho, sua família é uma bênção para nós nessas terras, garoto! Manda ver! — O senhor maquinista tinha por volta de sessenta anos, baixinho e com cabelos cinzas, se destacava por conta de seu bigode e seu nariz avantajado, além de sua boina e macacão azul com partes sujas de neve. Se estivesse de vermelho, poderia com facilidade fazer o papel de papai noel para alegrar as crianças durante o natal.
O comentário dele me fez lembrar que eu era um Osfner, uma das grandes famílias de magos de todo o mundo, sendo a maior do país. Eu não poderia decepcionar em momento algum, nós somos os heróis dessas terras e desta nação. — Pode deixar, senhor. Você vai ouvir falar muito sobre mim em breve! Posso saber o seu nome? — Preciso mostrar confiança, quando eles precisarem de ajuda, nós magos precisamos salvar as pessoas, esse é um dos nossos papéis.
— Ah, meu nome é Francis Strun! — Ele me disse com um sorriso alegre de orelha a orelha. Acho que não é todo dia que um aluno conversa com o maquinista. — e o seu, rapaz?
— Me chamo Lucen Osfner, Lucen Ren Morvaen Osfner! O futuro maior estrategista que esse mundo já viu! — Respondi com vontade. Meu nome de batismo é Lucen Morvaen Osfner. No mundo dos magos, a família mais importante vem depois da família de sobrenome menos famoso, por isso, o sobrenome da minha mãe vem antes do sobrenome de meu pai. É comum ver brigas eternas que surgiram por conta da futilidade de qual sobrenome é o mais importante, apenas para decidir como será o sobrenome da linhagem, mas minha família nunca se importou com isso. Pelo contrário, a maioria tem uma boa relação. Ren não é bem parte do meu nome, mas gosto de me apresentar assim. É uma homenagem para um antigo amigo meu…
— Estarei torcendo por você, Lucen Osfner! — O maquinista exclamou antes que eu saísse pela porta do trem com um sorriso.
Após acenar para a locomotiva que partia da estação, percebi alguns olhares — bons e ruins — me encarando. Eu já sabia o que eles estavam pensando. Eles pegaram seus celulares e tiraram fotos de mim como se eu fosse algum tipo de ser exótico, uma subcelebridade, mas eu sempre odiei essa sensação… parecia que eu era um animal de zoológico. Respirei fundo e segui meu caminho, apenas os ignorava. Quero ser tratado como igual pelos meus colegas. Ser tratado como diferente — para o bem ou para o mal — é algo que sempre me incomodou. Não sou melhor do que ninguém por conta da família em que nasci. Quero ser um mago, assim como qualquer um pode ser.
Enquanto passava pelas ruas cheias cobertas de neve, testemunhei a imponência dos grandes portões escuros de aço maciço, marcados pelo enorme símbolo da escola que protege a barreira de gelo. Fui engolido pela imensidão da escola, o chão de mármore acinzentado refletia a luz do saguão, e uma fina névoa fria se formava por toda a entrada, com o calor dos aquecedores não suprimindo a ansiedade da maioria dos estudantes agasalhados que estavam ao meu lado. Cada passo naquele enorme corredor ecoava como a marcha de um exército, que era vagamente dispersado por vozes excitadas e leves risadas de deboche.
Entre tantos rostos novos, reconheci alguns conhecidos de minha terra natal. Carson, o filho do padeiro, ajeitava as próprias luvas, enquanto conversava com Jaylen, a filha da cabeleireira, e alguns outros que sabia ou não sabia o nome, mas bem, nós não éramos necessariamente amigos. Para ser honesto, eles sempre me tratavam com uma distância estranha, uma cordialidade forçada, eu sabia que eles tinham certo medo, mesmo que eu sempre tenha sido apenas um garoto magro de cabelos bagunçados e óculos, meu sobrenome sempre pesava mais do que minha aparência. Não pude evitar pensar — Eu espero encontrar alguém legal aqui… — Essa fagulha de esperança me fez lembrar de Ren.
Ren foi o único amigo que tive da minha idade. Bom, na verdade, o único amigo que tive da minha idade por bastante tempo. Ele era um garoto de cabelos brancos e olhos vermelhos carmesim. nos conhecemos no primário, na época em que uns garotos mais velhos perturbavam minha paciência por eu ser da família Osfner, mas nunca tiveram coragem de encostar um dedo em mim. Eu não me importava nem um pouco com isso, mas um belo dia, eu acabei vendo esse mesmo garoto sendo xingado de coisas terríveis, por ter um par de chifres vermelhos. Apenas os Bouvare possuem chifres — já que estes têm características de touros, ovelhas e similares — mas Ren era um Sangue-Orc, então, ele era chamado pelos piores nomes possíveis, que me recuso a lembrar. Nesse caso, são muitas vezes mutações genéticas vindas de experimentos feitos por magos malignos, e eu era a única criança ali que tinha como saber disso.
Quando me dei conta, eu e Ren já éramos melhores amigos. Me lembro que, algo muito curioso e que foi uma coincidência enorme, foi quando ele me contou que era órfão, descobri que morava no orfanato Irmã Helena, onde minha mãe costumava ajudar. Desde então, éramos como irmãos — ficávamos brincando todos os dias, e compartilhando nossos sonhos, como se o tempo não tivesse importância. Mas, como tantas coisas na vida, aquilo também não durou.
Na mesma semana, alguns dias antes de acontecer aquele terrível acidente, Ren desapareceu. Não houve explicação. Ele foi dado como morto, e com o tempo, todos aceitaram essa versão. Eu também aprendi a aceitar… pelo menos, quase. Depois de uns anos, comecei a carregar o nome dele comigo, através de um apelido — como se fosse uma lembrança — ou talvez… não querendo desistir. Boa parte de mim sabe que é tolice, mas outra parte — talvez aquela mais teimosa e infantil que todo mundo carrega durante a vida — ainda guarda uma certa esperança.
Encostei as costas por alguns minutos em uma das pilastras, quando…
— Atenção, atenção por favor. Aqueles que desejam integrar-se à instituição, por favor, organizem-se em fileiras conforme a instrução dos monitores. — Uma voz um tanto rasgada e um pouco cansada, mas bem séria, ecoou dos alto-falantes do salão de entrada. Conforme eu seguia as instruções, vi um rosto bem familiar que me fez dar um sorriso.
— Não pense que eu vou te dar vantagem de algum jeito, hein? — Uma moça um pouco mais alta que eu, de cabelos e olhos escuros, mas, pele branca como a neve, brincava comigo em um tom meio jocoso e sarcástico, enquanto ajeitava seus óculos. Essa era Peri, uma de minhas primas. Como ela havia acabado de se formar na mais importante academia de magia, ela estava fazendo estágios para no futuro se tornar professora. Tem uma diferença entre escolas e academias, que é um filtro ainda maior. Existem diversas escolas de magia no mundo, mas, apenas cinco grandes atuais academias de magia, que são a elite e maior objetivo para a maioria dos magos. No caso, Peri acabou de se formar na maior delas, Akedea.
— Com certeza não, e é exatamente assim que quero. — Respondi para ela enquanto acenava. Minha vontade era de chegar mais perto e a abraçar, mas, essa não era a melhor ocasião para isso. Portanto, eu decidi apenas sorrir para ela.
— Quanto maior o desafio, melhor, não é? Seja o primeiro colocado, hein? — Desde que disse que queria ser professora em uma academia, fiz uma promessa para Peri, de que eu entraria em Akedea antes dela conseguir o título. Nós temos uma certa competição em jogo desde então, e eu quero muito ganhar, mas não ficaria nem um pouco triste em perder.
— Te vejo quando eu estiver lá no pódio. — Sorri enquanto ajeitava o cachecol em meu pescoço conforme ela se afastou. Ela e os outros monitores subiram até o mezanino do salão de entrada, onde estavam alunos uniformizados — meus futuros veteranos — e alguns professores. Um deles era o dono da voz que antes ecoava pelos alto-falantes, vestido de um uniforme preto com detalhes cinzas e um cabelo bem despenteado, deu alguns passos à frente.
— Bom, é um prazer ter todos os candidatos aqui. Vocês passarão pelas provas de seleção, onde, apenas aqueles que somarem mais de 20 pontos, serão aprovados. No entanto, com o novo decreto apresentado pelo Conselho Mágico, diferente dos anos anteriores, agora apenas os cinco primeiros colocados receberão uma bolsa de estudos, que os permitirá frequentar a escola gratuitamente. Nem todas as instituições são obrigadas a acatar com a vontade do conselho, mas a Ice Barrier é uma instituição séria e que tem como um de seus pilares a disciplina. Os que não desejarem participar das três provas, podem sair da sala. Isso é tudo, boa sorte.
Enquanto alguns alunos levantavam questionamentos perplexos e dúvidas confusas, outros sussurravam insultos, algumas dezenas dos jovens que ali estavam acabaram saindo da sala, seja por desistência, seja como revolta. Por mais que eu estivesse ainda indiferente em relação ao teste, afinal, tinha plena confiança em minhas capacidades, sabia que para a maioria era um choque, visto o desastre que aconteceu na comunidade dos magos durante o ano passado. A morte de um estudante durante uma transmissão.
créditos:
escrito por Vicarious Leal