Akedea

Capítulo 2 - Nota Máxima

Ilha de Magiones, cerca de seis meses atrás. Foi o dia em que ocorreu o evento que marcaria mudanças na nossa geração de magos. Todos os anos, é costume realizar o grande evento, os Jogos Mágicos de Delfeu, ou, de maneira popular, Jogos Mágicos — realizados numa ilha construída no último século, por heroicos magos que marcaram suas épocas e deixaram algum legado, por menor que fosse. As competições se dividem em dois grandes torneios: entre escolas de magia e entre academias.

 

Mas naquele ano, algo diferente aconteceu. Lembro-me de assistir aos jogos da competição em casa. Assistia aos jogos com minha irmã e outros familiares, quando algo me gelou a espinha. Pelo meu instinto, cobri os olhos dela antes que visse o horror que se seguiu — ossos quebrando, um grito engasgado em sangue. Logo após isso, a transmissão caiu. Eu, por reflexo, quase vomitei — me segurei por pouco ao ver tal cena.

 

Esse trágico evento causou um enorme alvoroço na comunidade dos magos. A morte foi um acidente, mas trouxe desconfiança no mundo todo e diversos protestos, tudo recaindo sobre um rapaz que tinha apenas dois anos a mais do que eu, que acabou expulso de sua escola. Não sei bem os detalhes do que aconteceu com ele, mas ele será lembrado pelas pessoas para o resto da vida como o aluno que tirou a vida de outro em um evento global. Vários desdobramentos vieram depois, mas dois foram especialmente graves. O primeiro se trata de uma quantidade reduzida de ingressantes para as escolas de magia ao redor do mundo; já o segundo, acredito que diversas empresas, magos e outras instituições romperam laços com o Conselho Mágico de maneira discreta, provocando uma drástica diminuição de seus recursos, reduzindo o número de alunos aptos a receber bolsa.

 

Honestamente, não me importei tanto. Para mim, era só mais um desafio — nasci para isso. — No entanto, antes que eu pudesse ter a minha não-reação, um rapaz desesperado próximo de mim levantou os braços até a altura da testa, suando frio, dizendo algo que não consegui entender. — E-Eu tô ferrado…!

 

Tinha a minha altura, com pele morena queimada de sol e o cabelo crespo, tingido de rubro e raspado nas laterais. Mas o que chamava atenção de verdade eram suas asas — penas pretas com toques vermelhos. Apesar do desespero, ele tinha um certa chama interna — a de quem já superou muita coisa.

 

Resolvi aparecer atrás dele, com um leve toque em seu ombro. — Olá. Preocupado?

 

O rapaz se virou na minha direção, meio confuso — Uh… Eu não entendi… — ele tentou falar na minha língua com um sotaque bem diferente. Ele, com certeza, é estrangeiro.

 

— Você não é daqui, não é? Vem comigo. — Caminhei até a bancada de atendimento do lado da entrada, não antes de fazer um sinal com a mão, indicando que era pra ele me seguir. O intercâmbio é muito comum nas escolas de magia, no entanto, é bem incomum em Ice Barrier e Gorskaria. São poucos os que escolhem se mudar para cá, visto como é frio esse país. Depois de falar com a simpática atendente, explicar a situação, a moça me entregou dois pares do que pareciam ser fones de ouvido, e os entreguei para o garoto, enquanto coloquei o outro par.

 

— Melhor agora? — Logo após isso, ele reagiu com um sorriso.


— Caaara! Valeu demais! — Ele girou o receptor nos dedos. — Que tipo de magia é essa?!

 

Ele apertou minha mão agradecendo, agora, eu estava ouvindo o que ele dizia em meu próprio idioma.

 

— São Receptores de Tradução. Eles são utilizados para fazer com que você escute tudo na sua língua materna. Você provavelmente não viu que era para pegar um.

 

— Mano, que irado! De novo, valeu demais… Éééé… Eu ainda não sei nada do que o cara lá em cima falou! — Ele disse com um sorriso enquanto coçou a parte de trás da cabeça.

 

— Sem problemas. Eu explico. — Conforme expliquei para ele com quase as mesmas palavras, adicionando um contexto ou outro, e quando cheguei que apenas os cinco primeiros iriam receber a bolsa, e de novo, ele levantou as mãos até a cabeça, ainda mais preocupado.

 

— Como assim? Eu achei que seriam os dez primeiros! Eu não sei se tenho chance, como você tá tranquilo com isso?!

 

— Ué, é só ficar em primeiro. — Eu não afirmei isso com orgulho, apenas disse de forma descompromissada e natural. O rapaz me olhou, levemente intrigado.

 

— Você é bem confiante, para dizer o mínimo… — Com razão, o rapaz estava sendo sarcástico, e apenas deu uma leve risada de nervoso.

 

— Ei, você já está aqui. Apenas dê o seu melhor. Se você veio de longe, você com certeza tem um motivo para estar aqui. Por sinal, não me apresentei até agora. Lucen Osfner. — Incrédulo, o rapaz ficou surpreso e logo pediu desculpas.

 

— A-ah, foi mal, não sabia que você era de uma família tão renomada! Desculpa mesmo pela falta de consideração! — Antes que ele pudesse terminar de pedir desculpas, eu o interrompi.

 

— Basta… você não precisa se desculpar. Pouco importa quem e muito menos de qual família eu sou, se quer estudar aqui, eu vou te tratar como igual. — Fechei o punho na direção dele, sem pressa, com um leve sorriso no canto da boca. — Agora, qual o seu nome?

 

O rapaz ficou surpreso com minha reação, eu acho que ele não esperava que eu dissesse isso. Ele ficou feliz e deu um leve soco na minha mão. — Eu sou Rudan Moriel!

 

— Muito bem Rudan… — Em instantes, mudei meu estado descontraído para um pouco mais sério. — Depois a gente conversa.

 

— Ué, pera aí! — Rudan intrigado levantou a sobrancelha, vindo logo atrás de mim. — Tá indo aonde?

 

Antes que pudesse responder, um sino escoou por todo o prédio, simbolizando que a primeira prova iria começar.

 

— Já está na hora, devemos ir. Faça o seu melhor. — Segui meu caminho indo até outra sala, enquanto vi o rapaz que acabei de conhecer indo para a outra sala ao lado, estávamos cada um em salas de prova diferentes.

 

Quando entrei na sala, me sentei no final de uma das fileiras, ao lado de uma garota que estava ouvindo uma música um pouco alta nos fones de ouvido. Tinha um tom de pele extremamente pálido, cabelos verdes escuros com algumas mechas pretas, além de estar vestindo um casaco preto com capuz. Parecia ser o tipo de pessoa que vive no próprio mundo, mas, antes mesmo que eu pudesse ouvir, ela escutou passos, e removeu os fones. Ela também estava usando Receptores de Tradução.

 

Uma mulher por volta dos 30 anos de cabelo vermelho curto entrou na sala, usando o uniforme de professora da Ice Barrier, simbolizando que o primeiro teste estava para começar. Seu tom de voz era leve e confiante ao mesmo tempo. Em sua fala, é possível ver que era uma pessoa muito determinada. — Atenção, por favor. Iniciaremos a prova de conhecimento teórico de Teoria Básica de Magias, Arcanismo e Táticas de Batalha. A prova terá vinte questões, vocês têm duas horas para finalizar. Após o fim da prova, vocês vão receber os resultados em alguns minutos. Os três primeiros colocados serão divulgados.

 

A pior parte foi a última. Entendi na hora o motivo. Estamos competindo pelas vagas, ou seja, nos próximos testes, os melhores alunos terão um alvo nas costas. Por alguns segundos, cheguei a considerar errar algumas questões de propósito, mas isso seria subestimar os outros alunos. Eu preciso da nota máxima em cada teste, essa é a linha de raciocínio de quem almeja o topo.

 

Assim que a prova foi entregue, eu resolvi as dezesseis primeiras questões em pouco menos de vinte minutos. Eram todas coisas muito básicas, e expliquei cada uma delas com muita facilidade, como por exemplo, explicando o conceito de mana, que possui nomes diferentes para cada região do mundo, mas, num geral, todas as coisas vivas possuem mana, sendo ela a energia que é o resultado do corpo, a mente e a alma do indivíduo. E é por isso que os magos mais poderosos do mundo treinam todos os dias, estudam a magia de maneira incansável e sempre buscam fortalecer suas vontades. Isso serve tanto para nós quanto para quanto para os animais, criaturas como os elementais e até mesmo algumas plantas. Claro, a maioria deles não tem o mesmo intelecto que nós… e também não precisam — um elemental de fogo não precisa estudar para lançar uma bomba que pode te carbonizar.

 

Outra pergunta foi sobre como a magia é transportada pelo nosso corpo, e isso é muito simples, já que ela percorre o corpo da mesma forma que o sistema nervoso, como se fosse uma extensão dele. Mas, uma pergunta que foi ainda mais importante que veio em seguida foi sobre quais cuidados um mago deve tomar ao utilizar suas magias. Esse é um clássico, a famosa “aposentadoria por sobrecarga”. A sobrecarga é um conceito simples, cada mago possui uma quantidade de mana, que aumenta conforme ele se desenvolve, o que já havia respondido antes. No entanto, quando essas reservas acabam, ele fica esgotado e não pode usar mais suas magias… bom, pelo menos na grande maioria dos casos. No entanto, enquanto ainda temos pelo menos uma fagulha de mana, podemos usar qualquer magia, mas tem um preço para isso. Quanto mais poderosa for a magia que utilizamos, geralmente, mais mana ela gasta. Portanto, dependendo do que o mago utilizar, seus ossos podem se quebrar, seus músculos podem rasgar, talvez nunca mais poder usar magia, ou então, em casos extremos, morte.

 

Também tivemos algumas perguntas sobre o Conselho Mágico, assim como suas leis. Lembrei das regras do Conselho. A que mais me marcou sempre foi: Nunca usar magia para satisfazer desejos egoístas. Essa frase sempre martelou na minha cabeça desde pequeno. Expliquei com clareza o que era cada uma delas, e os motivos por trás de cada mandamento. Eu os sabia de cor e salteado — Uma hora eu decorei, por causa daquele quadro com todos os mandamentos lá em casa…

 

A pergunta mais fácil, sem dúvidas, foram quantos tipos de magia existem ao total, qualquer aspirante sabe uma pergunta dessas. Existem quinze tipos principais, que se dividem em outros subgrupos menores, e ainda os citei, só por não estar com pressa — Alquimia, Arcanismo, Atirador… — Listei todas, até Táticas de Batalha.

 

Falando nelas, também foi abordado na prova os tipos de magia estudados da escola. Escolhi entrar na Ice Barrier principalmente pelo desenvolvimento em Arcanismo e Táticas, dois tipos de magia que mais me interessavam, além de alguns de meus parentes já terem estudado aqui. Respondi com detalhes todas as questões, respondendo a elas em uma ordem quase que aleatória de quem olhasse por fora, poderiam me confundir com alguém desesperado. Por fim, deixei por último a questão 17, que me chamou a atenção — Durante um confronto entre dois grupos, um de magos arcanistas e outro de magos corporais, ambos com mesma quantidade de números, e ambos os grupos tendo um mago que saiba utilizar a magia Visão Campal, qual deles teria maior vantagem? Explique como o uso adequado dessa vantagem pode decidir a vitória.

 

A resposta era aberta para interpretação, não era exata. Eu havia entendido, apenas o aluno que colocasse a melhor resposta acertará a questão. Então peguei meu lápis e comecei a escrever no papel — Se formos considerar que os grupos possuem o mesmo nível de habilidade e um cenário em que ambos os estrategistas possuam a mesma experiência, com ambos tendo estratégias gerais de mesmo nível, seja por planejamento, utilização do terreno e outras variáveis de combate, terá a vantagem a condição de experiência de ambos os grupos, e quanto maior for essa quantidade, maior será a chance de vitória dos arcanistas. Se for um grupo de magos iniciantes, os magos corporais terão vantagem, já que sua curva de evolução é mais gradual, e quanto maior a experiência dos grupos, maior a vantagem dos arcanistas, já que estes podem aprimorar seu alcance, área de efeito e versatilidade ao longo do tempo bem mais facilmente do que os magos corporais.

 

Assim que respondi a última questão, ergui a mão, terminando a prova em cerca de vinte minutos. Ao mesmo tempo, quase como um espelho, a garota ao meu lado também levantou o braço, ambos nos encaramos um pouco confusos, mas logo olhei para ela com um rosto de dúvida, e ela também. — Ela é boa. Melhor do que eu esperava… — Era como se nós dois quiséssemos perguntar como o outro fez a questão mais difícil. Provavelmente eu e ela estávamos competindo pelo primeiro lugar da prova mas, ela era muito inexpressiva — mal se notavam suas emoções.

 

Enquanto eu esperava o resultado da prova, fiquei apenas olhando para o teto — cheguei até a pegar no sono… Esse raio de relógio que não passa… — alguns minutos antes de anunciarem o resultado, ouvi os baixos sons de um cantarolar, era aquela menina, cantando o que parecia ser uma música underground.

 

Chegou o horário em que finalmente o sino tocou, e muitos não entregaram a prova, desistindo do teste. Eu e os outros fomos andando de volta para o corredor principal, mas notei uma presença me seguindo. — Como você respondeu a questão 17? — Quando me virei, era a garota de antes. Ela tinha um sotaque um tanto diferente, era provável que ela fosse estrangeira.

 

— Claramente naquelas condições, os arcanistas têm a vantagem. — Complementou ela.

 

— Tem tanta certeza assim? Eu não teria tanta certeza… Bom, se eu estiver errado, te digo o que respondi depois. — Me virei com um sorriso um tanto sarcástico no rosto. Não é que eu quero fazer joguinhos, só quero que ela chegue na resposta sozinha.

 

Ela não reagiu. Continuamos andando até o corredor principal. No meio do caminho, parei vendo um certo rapaz com asas cabisbaixo e um tanto dramático com a prova. — Eu perdi… perdi tudo… — Rudan caminhava de olhos fechados, com os braços caídos e com a coluna arqueada… Se ele fosse um pouco mais dramático, poderia ser ator — Eu sou uma fraude…

 

Com passos soturnos, me aproximei por trás dele, quase como um fantasma. — Uhhhh… Eu amaldiçoei sua prova… — Ele deu um pulo e bateu as asas, voando alguns centímetros para frente.

 

— QUE SUSTO! Faz isso não, quer me matar do coração? Eu tô perdido! — Rudan desceu para o chão, ainda um pouco nervoso.

 

— Perdão, não pensei que você fosse sair voando, literalmente. Mas relaxa, vai dar tudo certo. Você nem sabe o resultado da prova ainda, e ainda tem outros testes. — Eu tentei animar Ruden mais uma vez, mas algo de fato o incomodou um pouco.

 

— Pra você é fácil falar… eu preciso chegar entre os cinco primeiros… E quem é essa aí atrás? — Rudan apontou novamente para a menina de cabelo verde, apática com a situação.

 

— Agora que você mencionou… não sei seu nome. — Olhei para ela e decidi estender minha mão para cumprimentar. — Me chamo Lucen Osfner.

 

Ela demorou alguns — para não dizer vários — segundos para reagir, formando um silêncio um tanto constrangedor, e por um segundo achei que iria ficar no vácuo. — Isane, Isane Tsuka. — Mesmo respondendo, ela olhou para minha mão, a encarando, voltou a olhar para mim, sem saber o que fazer e com as mãos nos bolsos.

 

Rudan para não me deixar constrangido apertou minha mão e também foi falar com ela. — Esse jeito de falar, é de Ubijan, né? Me chamo Rudan Moriel, muito prazer! Eu sou de Avraluz, acho que a gente pode se dar bem! — Notei uma sutil olhada de canto de olho na expressão dela quando ele mencionou o país; mesmo assim, Isane não disse nada.

 

— Entendi… É só conhecer uma garota e o desespero foi embora, não é, Rudan? Conheço seu tipo… — Falei com um tom bem sarcástico.

 

— E-Ei, não é isso! — Rudan riu da minha brincadeira, mas deu uma olhada de novo na direção de Isane. E não é que eu estava certo?

 

Quando Rudan soltou minha mão, Isane estendeu a mão para cumprimentar a nós dois logo após. Eu não consegui evitar dar uma leve risada — foi um pouco engraçado — nós três apertamos as mãos uns dos outros, Isane continuou com a mesma reação e Rudan estava com um enorme sorriso por causa do que aconteceu.

 

Após isso, aquela voz rasgada e cansada do homem de cabelos despenteados ecoou pelo prédio através dos alto-falantes. Nós fomos juntos até o hall de entrada, e no telão, apareceu um pódio com as fotos, nomes e notas na primeira prova. Isane foi a primeira a quebrar o silêncio de nós três.

 

— …Nove…? — ela murmurou, franzindo um pouco a testa.

 

Em segundo lugar, estava um rapaz loiro de orelhas pontudas, com o nome de Miken Lizriel. Sua nota era 9,5. Eu respirei fundo e fechei os olhos, antes do primeiro colocado aparecer.

 

Quando os abri, sorri orgulhosamente.

créditos:
escrito por Vicarious Leal

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